Há quase 12 anos, durante o mês de Agosto, o meu telefone tocou. Do outro lado a Margarida, que havia sido minha chefe um ano antes, disse-me que precisava de falar comigo e perguntou-me se podia dirigir-me à Escola de Avis. Sem hesitar disse que sim, que iria falar com ela, mas logo me surgiu o porquê e, da mesma forma que sem hesitar lhe disse que sim, lhe coloquei a questão. Na altura disse-me que não queria falar por telefone e eu, naturalmente acedi e respeitei a sua posição, tendo-me então deslocado à escola no dia seguinte. Quando lá cheguei, com o cabelo quase tão comprido como quando tinha 18 anos, os cumprimentos e as conversas de ocasião preencheram uma parte do dia. Foi então que a Margarida, a Lena e a Luísa puxaram o assunto que me levara lá. Começaram por dizer que tinham pensado em mim para um projeto que era a minha cara, ser Coordenador de um PIEF. Para os menos familiarizados com estas coisas das siglas da Educação, um PIEF é um Programa Integrado de Educação e Formação que integra alunos com algumas particularidades como são o exemplo dos comportamentos disruptivos ou do abandono escolar precoce. No entanto a proposta traria mais qualquer coisa, anexa a ela vinha também o convite para integrar a Direcção do Agrupamento de Escolas de Avis. Na altura confesso que fiquei em estado de choque e duvidei mesmo das minhas próprias capacidades para desempenhar tal cargo, para ser sincero ainda hoje duvido um bocadinho que as tivesse. O que me disseram era que seria só um ano lectivo ao que eu respondi que era demasiadamente desorganizado com papéis para poder aceitar. De imediato a Lena disse-me que também não percebia nada de papéis (tudo mentira!) e aí a minha insegurança esbateu-se um pouco. Propus então falar com a minha família para rapidamente lhes transmitir a nossa decisão. E assim fiz. Questionei a Zézinha, os meus pais, o meu irmão e todos me deram força para aceitar o desafio. Aceitei-o numa de viver a experiência do outro lado, e como era só um ano, talvez não fosse tão doloroso tratar de papéis. Depois de passado esse ano, e sem que tivesse sequer dado pelo tempo passar, vieram quase mais 11. Saiu a Lena, entrou a Ana Rosa… saiu a Luísa e a Ana Rosa, entraram a Ana Isabel e a Joana… saiu a Joana entrou a Lina… e eu que era só para ficar um ano fui-me mantendo com a Margarida até hoje.
Aceitei-o numa de viver a experiência do outro lado, e como era só um ano, talvez não fosse tão doloroso tratar de papéis. Depois de passado esse ano, e sem que tivesse sequer dado pelo tempo passar, vieram quase mais 11. Saiu a Lena, entrou a Ana Rosa… saiu a Luísa e a Ana Rosa, entraram a Ana Isabel e a Joana… saiu a Joana entrou a Lina… e eu que era só para ficar um ano fui-me mantendo com a Margarida até hoje.
A primeira reunião a que assisti enquanto membro da Direcção da escola foi em Portalegre e a ordem de trabalhos era constituída por um único ponto, a abertura do ano lectivo. Começou às três e meia da tarde e terminou quase às dez e meia da noite. Foram quase 7 horas de “seca”. Sim, confesso que detesto reuniões! E tudo o que seja mais de duas horas e meia, três horas já não consigo ouvir nada. Sempre fui assim, muito mais prático que teórico. Felizmente consegui arranjar estratégias para me entreter nas horas seguintes, normalmente eram passadas a desenhar ou a pensar disparates. Quando o tempo de reunião ultrapassa o tolerável para mim, observo as particularidades de cada um, a forma como os oradores se expressam, se são fanhosos, se são meio gagos, se repetem determinadas palavras ou expressões. Sobre isto, chego mesmo a contar o número de vezes que o fazem. Observo a conjugação da roupa, os tiques, os penteados. Imagino-os a fazerem as coisas mais absurdas que se podem imaginar e chego mesmo a esboçar uns sorrisos que, muitas vezes, quase passam a risos incontroláveis só de pensar no absurdo das situações. O que é certo é que tenho que controlar o meu cérebro para não me deixar adormecer. Enfim, como podem imaginar, esta minha primeira reunião foi para mim um suplício e no final da mesma perguntei à Margarida se isto era sempre assim, é que se fosse eu recusava-me a ir a mais alguma. Ela descansou-me e disse-me que não. Felizmente nunca mais, nestes anos todos, tive uma reunião tão longa.
Foram quase 12 anos de muitas reuniões, é um facto. Mas também foram quase 12 anos de muita aprendizagem, de partilhas, de cumplicidade, de entreajuda, de comprometimento… Não querendo, de forma alguma, fazer o papel de um político em campanha (Deus me livre!!) acho que é importante espelhar aqui o que foram estes quase 12 anos. Foram quase 12 anos de obrigados mas também de desculpas… foram quase 12 anos de cooperação, de planeamento, de confiança, de adaptação, de criatividade… foram quase 12 anos de flexibilidade, de comunicação, de esforço… foram quase 12 anos de amizade, de risos (“muuuitos” risos), de choro, de angústia, de compreensão, de alegria mas também de tristeza, de desilusão e de sacrifício pessoal e familiar. Nestes quase 12 anos acertámos mas também errámos, trabalhámos todos em equipa, em sinergia, ouvimos, inovámos, motivámos, fomos proactivos, dinâmicos, tomámos decisões fáceis mas também difíceis… Nestes quase 12 anos relaxámos, concordámos, discordámos, tivemos visão, olhámo-nos nos olhos, discutimos, zangámo-nos, criticámos, fomos criticados, obtivemos resultados bons, menos bons, gerimos conflitos, trocámos experiências, descentralizámos, trouxemos modernidade, personalidade, transformámos a Biblioteca em Centro de Recursos, equipámos a escola com material didáctico, informático, construímos o tão ambicionado campo de jogos para os alunos, transformámos uns antigos balneários e arrecadações num auditório para 147 pessoas, criámos, com a ajuda de muita gente, um Centro de Formação Desportiva de Remo, fizemos a manutenção e recuperação dos espaços da escola e principalmente tentámos apoiar os nossos colegas e funcionários respondendo, sempre que possível às suas solicitações, angústias, e tentando sempre resolver os problemas que surgiram com equidade e equilíbrio. Fundamentalmente tentámos dar aos nossos alunos a auto-estima necessária para que pudessem aprender e participar na vida da escola de forma autónoma, natural, equilibrada, em paz, com alegria, espírito de entreajuda e promovendo os valores do respeito, da honestidade, da humildade, do amor.
Em Janeiro último pediram-me para escrever o editorial do jornal da escola e nesse editorial fiz questão de expressar a minha opinião sobre o que é para mim a escola, a minha escola. Partilho-o aqui convosco:
“A existência de um jornal numa escola é fundamental para transmitir a toda a comunidade o que realmente se passa cá dentro. No fundo é como que um abrir das portas às pessoas para que elas entendam que aqui há vida, que aqui se aprende, que aqui se sente… que aqui se partilham saberes, momentos… que aqui se aprendem valores essenciais para se viver em comunidade… que aqui se aprende a ser dialogante, cooperante, autónomo… que aqui há liberdade, trabalho e responsabilidade… para que as pessoas percebam que aqui se transformam crianças em jovens e que se pretende que esses jovens saiam daqui com vivências, aprendizagens e experiências fantásticas para a vida e se formem cidadãos responsáveis… Aqui, ensinar é o caminho… aprender é caminhar. Mas não é só.
Se perguntarmos aos antigos alunos da nossa escola qual o sentimento que nutrem por ela, a quase totalidade vos dirá que têm saudades desses tempos, das amizades, das brincadeiras, de alguns cheiros, de alguns sabores… lembrar-se-ão dos dias de chuva, de calor, dos dias de festa, de determinadas matérias, daquela conversa, daquele teatro, daquela música, daquele beijo às escondidas… lembrar-se-ão dos colegas, dos funcionários, dos professores. Fruto das suas próprias experiências de vida, muitos deles dirão também que se pudessem voltar atrás e estudar mais do que o que fizeram, talvez a vida se encarregasse de lhes dar mais e melhores oportunidades.
Todos sabemos que nem todos podem ser doutores mas todos também sabemos que sem esforço, determinação, sacrifício e trabalho nada se consegue. No fundo, o que mais orgulho me dá, é ver que os nossos alunos se tornaram boas pessoas, sejam eles doutores ou não, tenham mais ou menos sucesso nos seus percursos de vida. Na realidade é a colocação do meu grãozinho de areia na construção da identidade de cada um que me dá mais prazer. 
A escola não é só aprender e ensinar, é viver! É, naturalmente, uma fase das nossas vidas que ao passar não mais regressará e que devemos aproveitar positivamente enquanto podemos.
Nos dias de hoje os alunos quase que passam mais tempo na escola do que em casa, por isso mesmo é importante que possam partilhar com as suas famílias e amigos um pouco do seu trabalho diário, um pouco das suas próprias vidas…”
Mas a escola, no seu sentido mais lato, não é só isto. Trabalhar como docente numa escola, nos dias de hoje, é uma tarefa quase hercúlea dada a quantidade de burocracia e de papéis que existem. Sobre a escola de hoje li há dias um texto que quero aqui reproduzir e cujo autor desconheço por completo mas que me fez reflectir bastante. Partilho convosco:
"Somos o país das escolas vazias. E dos mega agrupamentos lotados. Onde há muitos professores sem trabalho e outros a enlouquecer pela quantidade do mesmo.
Somos o país onde na mesma sala há dois, ou três ou quatro anos escolares distintos. Mas não interessa, porque não há dinheiro para dois professores. Somos o país onde os programas escolares são gigantes e muitas vezes desenquadrados das necessidades de aprendizagem. Somos o país onde desde cedo se tem explicações, não porque os nossos alunos não sejam suficientemente inteligentes, mas porque o programa é louco. Onde os pais não conseguem ajudar a fazer os trabalhos de casa, agora mais exigentes e em maior quantidade. Somos o país onde não há praticamente psicólogos nas escolas, porque não há verba. Somos o país onde as crianças ou não têm tempo para brincar, ou já não sabem brincar. Somos o país onde o ensino especial é só para alguns e a diferença não é contemplada, sendo grande parte das vezes, só alvo de rótulo. Somos o país onde cada vez mais há crianças a entrar com 5 anos para a escola, anulando-lhe a possibilidade de mais um ano de brincadeira para melhor crescer e para desenvolver de forma consistente a concentração e atenção, fundamentais para o processo de aprendizagem. Somos o país onde o número de crianças com hiperatividade e de défice de atenção é, no mínimo, bizarro, onde a imaturidade reina e a falta de controlo de comportamento também. E de regras, com certeza. Somos o país com programa de ensino desfasado do desenvolvimento das suas crianças. Somos o país onde algumas crianças trabalham mais horas que adultos. Somos o país que premeia os quadros de mérito, mas não premeia a excelência humana. Que pena, talvez se assim fosse, os níveis de violência nas escolas fossem menores. Somos o país de pais cansados e desorientados. Somos o país de professores angustiados e revoltados. Somos um país de cortes. Que corta em tudo. E mais precisamente, no futuro do seu próprio país. Somos um país cheio de tanta coisa, mas vazio do que realmente interessa. Somos um país que precisa de dar um murro na mesa e defender aquilo que é seu. Nosso. A escola. As crianças."
Este texto reflecte, na generalidade, a parte pior daquilo que penso da escola de hoje, a escola que dá mais importância aos números do que às pessoas. Para ser o mais sincero possível, desde o primeiro dia que comecei a dar aulas até hoje, não senti que houvesse evolução no estado da educação no nosso país. A quantidade de vezes que se mudam os modelos educativos ou os conteúdos programáticos por exemplo, à medida que há mudanças de governos, proporciona e propicia uma completa rebaldaria que só confunde os agentes educativos, principalmente os alunos. Não existe consolidação de nenhum modelo pelo menos desde que comecei a dar aulas há quase 20 anos e isso reflecte-se no estado a que isto chegou. Interessa passar alunos para que os números dos relatórios sobre a educação em Portugal melhorem, não interessa transitá-los com qualidade nas suas aprendizagens. Com isto não estou sequer a abordar a sempre polémica transição ou não dos alunos, o que, na realidade, me importa é que eles saiam da escola não só com conhecimento mas também com valores humanos consolidados para viverem saudavelmente em sociedade. Os nossos governantes esquecem-se sempre daquilo que os docentes nunca esquecem, os jovens de hoje são os Homens de amanhã. Na educação não importa só o agora, importa sempre o depois, e mais que os números estão as pessoas.
Durante estes quase 12 anos, mesmo cumprindo as orientações da nossa tutela (concordando ou não com elas), tentámos que a vida na nossa escola fosse vivida pelos nossos alunos baseada em valores de humanidade. Se conseguimos ou não, não sei. Sei que trabalhámos com honestidade, responsabilidade e empenho para o conseguirmos.
Trabalhar na escola de Avis não é fácil. Não é fácil trabalhar em escola nenhuma. Nenhum dia é igual ao outro, não existem muitas rotinas, a não ser as do toque da campainha (quando existe). Fazendo um breve balanço destes quase 12 anos, o que mais detestei foi dar “castigos” aos alunos… a sério, não faz parte da minha personalidade! Nem tudo foram rosas neste tempo, é um facto. Esta história de gerir recursos humanos tem muito que se lhe diga. E quando os recursos são adultos ainda mais difícil se torna. É impossível evitar o choque de personalidades. Gerir egos e personalidades completamente díspares é muitíssimo complicado, há que ter um jogo de cintura absolutamente brutal. Era, de facto, interessante que todos os docentes pudessem passar por uma Direcção de uma escola para observarem não só esta realidade mas também a imensidão de coisas que têm que ser feitas, de forma a entenderem que, não raras vezes, a implementação de determinadas regras são oriundas das hierarquias e que as decisões tomadas não são autónomas mas, muitas vezes, impostas. Também era importante que, de X em X anos os docentes fossem conhecer outras realidades, viverem um ano ou dois noutras escolas, mesmo que próximas, para perceberem que ser “dinossauro” numa escola nem sempre é bom, pelo menos não lhes dá o direito de quererem que, por exemplo, o orçamento de uma escola seja gerido como se de um orçamento familiar se tratasse, até porque as diferenças são abismais, ou quererem que a escola seja como era antigamente. Os paradigmas mudaram. Mudam dia após dia e há que seguir em frente.
Passados quase 12 anos é altura de dizer adeus a Avis. Cheguei aqui com menos 30 quilos, sem cabelos brancos e a fumar desalmadamente. Saio daqui enriquecido pelas vivências que vivi, pelas pessoas que conheci, pelas amizades que fiz e levo comigo não só uma vila mas um concelho lindíssimo que merece ser visitado.
Passados quase 12 anos é altura de dizer adeus a Avis. Cheguei aqui com menos 30 quilos, sem cabelos brancos e a fumar desalmadamente. Saio daqui enriquecido pelas vivências que vivi, pelas pessoas que conheci, pelas amizades que fiz e levo comigo não só uma vila mas um concelho lindíssimo que merece ser visitado.
Da escola levo muito mais, levo o meu coração cheio… cheio com muito mais do que a amizade dos assistentes técnicos e operacionais, levo a simpatia do Sr. Feijão e da D. Elisa, a disponibilidade, cumplicidade e lealdade do Sr. Domingos, as artes manuais do Sr. Antunes, do Sr. António Corrula e do malogrado Sr. João Silva, levo comigo as constantes e hilariantes brincadeiras da D. Celestina, a competência e solidariedade da D. Maria José Carago e a cordialidade da D. Maria José Varela e do Sr. António Joaquim, levo a excelente comidinha da D. Maria do Rosário (hum!!!), da D. Ana Maria e da D. Isabel Lopes, a humildade da D. Margarida Matias, a presença da Elsa, do Sr. Zé e da D. Maria José e o fundamental apoio da D. Paula e da D. Maria Joana, levo comigo as fantásticas coseduras da D. Margarida Carrilho, a cortesia da D. Fernanda, as sábias benzeduras da D. Vitória e a elegante perspicácia da D. Aurora, levo os belos bolinhos com creme da Zéfinha e da Belinha, o chão molhado e o equilíbrio da Filomena, a sobriedade da Carmen, a criatividade do Tiago e a lealdade da Cristiana e levo finalmente comigo a sabedoria, a experiência, a cumplicidade, a responsabilidade e o altruísmo da D. Rosa que foi muitas vezes quase nossa mãe. A todos, sem excepção… MUITO OBRIGADO!
Para além disso, e como tenho um coração muito grande, levo muito mais gente, levo centenas de alunos (de que não me esquecerei, nunca!) e a maioria dos colegas que comigo compartilharam a vida na escola. No cantinho mais especial deste músculo que nos faz estar por aqui, levo as horas partilhadas com a Lena, as brincadeiras da Luísa, a seriedade da Ana Rosa e a invulgar capacidade de trabalho da Joana e levo, fundamentalmente, a parceria e habilidade da fantástica Lina, o genial profissionalismo e empenho da magnífica Ana Isabel, e o apoio, cumplicidade, solidariedade, inteligência e amizade da extraordinária Patrícia e da impetuosa mas versátil, sincera e honesta Margarida. Todas deram o melhor de si, de todas retirei ensinamentos e todas foram profissionais 5 estrelas… por isso… MUITO OBRIGADO!
Passados quase 12 anos é altura de dizer adeus a Avis. Saio daqui com a consciência tranquila do dever cumprido e de tudo ter feito em prole dos alunos. Saio com mais 30 quilos, com milhares de cabelos brancos mas pelo menos, deixei de fumar. É verdade, vou ter saudades do caminho, sempre diferente de dia para dia. Reafirmo que saio enriquecido pelas vivências que vivi, pelas pessoas que conheci, pelas amizades que fiz e levo comigo não só uma vila mas um concelho lindíssimo que merece ser visitado. Até sempre… ou até um dia AVIS!
* Professor Luís Parente